De “possíveis sintomas” relacionados ao transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) a comportamentos apontados como parte do transtorno bipolar, o aplicativo TikTok apresenta um cardápio extenso de sinais que podem corresponder a uma doença. A hashtag #saúdemental já conta com 3,1 bilhões de visualizações. A onda de autodiagnósticos para transtornos e distúrbios psíquicos e neurológicos, causada principalmente pelo contato com informações difundidas na internet, preocupa especialistas.
As principais consequências do avanço desse fenômeno são a automedicação e o eventual sofrimento mental relacionados à suposta “descoberta” de uma condição.
Adolescentes e jovens adultos são os mais afetados. No TikTok, por exemplo, a partir dos 13 anos já é possível abrir uma conta e o público majoritário da rede é a geração Z (nascidos entre 1990 e 2010).
Igor Sam, de 29 anos, conta que o processo de buscar respostas sobre sua ansiedade começou quando vídeos relacionados à saúde mental apareceram pela primeira vez no seu feed do TikTok. Ele acredita ter hipocondria, uma condição em que a pessoa sente muita ansiedade e nervosismo em relação à própria saúde.
— Acreditava que tinha somente a ansiedade comum, que todo mundo tem. Mas agora sei onde me encaixo, o que me ajudou a tentar manter mais a calma quando me sinto aflito. Me identifico com 92% dos sintomas — conta o atendente de loja, que diz ter encontrado seu diagnóstico após fazer um teste na internet.
Apesar de ter ficado impressionado ao se deparar com as respostas para as perguntas que sempre fez a si mesmo, Igor afirma que pretende procurar um profissional para confirmar suas suspeitas nos próximos meses.
Os transtornos campeões de menções em vídeos relacionados ao autodiagnóstico são o TDAH, o mais procurado da plataforma, com 4,4 bilhões de visualizações, seguido do transtorno do espectro autista (TEA), com 1,4 bilhões e o transtorno de personalidade limítrofe (conhecido como borderline), apresentando 613,4 milhões.
O professor Rossano Cabral Lima, do departamento de Psiquiatria da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), entende o processo de autodiagnóstico como algo que sempre existiu.
A pessoa escuta, assiste ou lê algo relacionado a sintomas e passa a procurar eles em si mesma. Mas Lima afirma que o diferencial encontrado nessa geração, com maior acesso à internet, é a influência do diagnóstico no processo de pertencimento ao qual o jovem está inserido. Ele passa a aliar essas características encontradas à sua formação de identidade.
— Muitas vezes o autodiagnóstico é uma tentativa de sentido para aquilo que até então estava sem sentido na vida desse adolescente. As pessoas vão lendo na internet e vão se identificando com alguns sintomas, não todos os quadros, às vezes apenas um é o suficiente — explica.
Riscos
Para ele, o cenário representa duas perspectivas. Uma positiva, entendendo isso como um avanço do debate sobre a saúde mental, pois as pessoas tendem a estar mais atentas aos próprios comportamentos. No entanto, o lado negativo representa um aumento desmedido de diagnósticos sem base científica, que influencia numa busca por medicamentos, seja por canais oficiais ou não oficiais.
— As pessoas acabam pegando esses fenômenos que são parte de períodos de conflitos na adolescência, períodos existenciais pelos quais toda pessoa precisa passar, e transformam isso em doença. O diagnóstico acaba tomando a responsabilidade de responder o famoso “Quem eu sou?”. Contudo, essa suspeita sem consulta que se transforma em certeza, traz o risco de diagnósticos falso-positivos. Aqueles que parecem ser positivos para a pessoa, mas seguidos de uma análise mais estrita, não se sustentam — alerta.
De mesmo modo, a psicóloga clínica Laura Cristina de Toledo Quadros, professora de Psicologia Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), aponta que nem todo sofrimento é sinônimo de algum problema neurológico ou psicológico. Ela explica que os jovens, muitas vezes sem maturidade, não conseguem discernir as informações fornecidas pelas redes sociais.
— Esses jovens veem essas nomenclaturas e se identificam, como uma maneira de pertencer ao grupo. É criada uma ideia errada de que todo sofrimento é uma patologia. A adolescência é uma fase de muito sofrimento. Contudo, isso pode fazer com que a pessoa paute a própria vida nessa afirmação — avalia.
Efeitos colaterais
No início dos anos 90 chegou ao Brasil uma nova geração de medicamentos, anti-depressivos e antipsicóticos. Comparado aos anteriores, eles apresentam efeitos colaterais mais leves. Contudo, nem sempre são a primeira opção recomendada.
Por exemplo: os estimulantes, utilizados para tratamento do TDAH, são do grupo das anfetaminas, o que representa redução da fome, quadros psicóticos e redução do período de sono.
— Os medicamentos são apenas um dos recursos terapêuticos que temos para garantir a saúde mental. Então, nem sempre são a resposta pois afetam muito o corpo do paciente. Existem outras formas, como psicoterapias e terapias ocupacionais, que muitas vezes podem ser bastante eficazes — explica o psiquiatra.
Em caso de suspeitas, é recomendado procurar um profissional da saúde. Contudo, como é pontuado pelo professor Rossano Cabral, isso não significa que um diagnóstico será dado na primeira consulta. Diferentemente da expectativa criada pela maioria dos pacientes quando chegam ao consultório, isso pode demorar um pouco.
— É necessário um tempo de acompanhamento para confirmar ou negar um diagnóstico. Então, se a gente na clínica pode ser induzido ao erro, imagina uma pessoa que chegou a tal conclusão com apenas um vídeo no TikTok. A chance de estar equivocada é muito grande — o psiquiatra esclarece.
Por isso, o ideal é evitar se autodiagnosticar por meio de poucas informações coletadas em canais que não possuem um profissional responsável. Afinal, os transtornos e distúrbios apresentam suas próprias singularidades.
— Essa pessoa passa a sofrer emocionalmente por uma condição que ela não tem. Existem até casos em que, no fundo, a pessoa gostaria de ter aquele transtorno e rejeita a intervenção do médico dizendo o contrário — diz o neuropediatra Alexandre Fernandes, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro da Associação Brasileira de Neurologia (ABN).
O GLOBO
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